“EU PRESTO ATENÇÃO NO QUE ELES DIZEM, MAS ELES NÃO DIZEM NADA.” : a dissonância cognitiva do homem modernamente primitivo ou “mentiras sinceras me interessam” .

 


"EU PRESTO ATENÇÃO NO QUE ELES DIZEM, MAS ELES NÃO DIZEM NADA.” [i] : a dissonância cognitiva do homem modernamente primitivo ou “mentiras sinceras me interessam”[ii].


Por Wagner Chagas de Menezes - Psicanalista e Historiador 

    Não há dúvidas que uma parte considerável da sociedade brasileira está sofrendo de "dissonância cognitiva":  uma doença fatal de certeza.  Ela se traduz em uma reação irracional a todos e quaisquer dados científicos e estatísticos, que vão de encontro às suas próprias certezas e visão de mundo. Neste caso, os dados são descartados, negados e até encarados como se inimigos fossem. É possível ver isso com clareza no movimento subversivo e ideológicamebte radical da extrema-direita brasileira, conhecido como “Bolsonarismo”.

    O psicólogo Leon Festinger (1919-1989), desenvolvedor da Teoria da Dissonância Cognitiva, chamou-a de incômoda tensão que surge quando duas coisas contraditórias são pensadas ao mesmo tempo.  Não é incomum a ideologia bolsonarista defender suas “verdades” com veemência, mesmo a despeito de toda e quaisquer provas materiais jurídicas ou científicas que as contradizem.  Isso sem contar com a profusão de opiniões como se fossem verdades cientificamente comprovadas.  Essa defesa, diante das evidências, soa desconexa, bizarra e, em alguns casos, até paranoico-psicótico.

    Qualquer pessoa deve conhecer no seu convívio familiar e/ou profissional alguém que manifesta um comportamento analítico dissonante.  Há nestes casos um trabalho combinado e inconsciente entre dois mecanismos ineficazes de defesa do ego: a formação reativa a serviço da denegação.

    Tentar corrigir este comportamento não racional no outro,  piora as coisas ao produzir o "efeito contraproducente".  Este efeito significa o reforço dos argumentos não racionais e irracionais do interlocutor ao colocar em risco os referenciais culturais, ideológicos e sociais da própria existência do outro.

    É evidente que a cultura e a mentalidade hegemônica de uma nação estão decisivamente presentes nas raizes desse processo psicológico, a dissonância cognitiva, em função de um determinado uso da psicologia de massas.  Tais memórias, do seu passado coletivo e de seus indivíduos, vão formando o que se chama de inconsciente.  O neurocientista Sidarta Ribeiro atualizou a existência do inconsciente (Ics) freudiano e já nos deixou claro que ele é aquilo que se forma, continuamente, em função da decantação de memórias.  É por meio desse processo de decantação de memórias, pensamentos, práticas, usos e costumes pessoais e sociais presentes em uma longa linha do tempo histórico, que a ideologia dominante vai mergulhando até ao nível do inconsciente, naturalizando-se de  forma imperceptível e ao ponto dos sujeitos a ela submetidos reproduzirem a visão de mundo da classe dominante como se sua fosse, independentemente da classe social a que se pertence. O objeto de desejo de todo aspirante à ideologia hegemônica é o inconsciente, até que ela mesma seja incoscientizada. 

A partir daí, cada sujeito, com exceção daqueles já pensam sob um paradigma cientificamente superior, expõe suas ideias como se fossem originais.  Mas sabemos que elas não passam de uma reprodução, muitas vezes sem nenhuma elaboração mental própria, da própria ideologia da classe social dominante; classe essa, muitas vezes bem acima do seu padrão de vida sócioeconômico. Aqui, outros mecanismos ineficazes de defesa do ego entram em combinação mental a serviço dessa ideologia, a saber: a identificação a serviço da alienação.

    Não é nada fácil romper com esta paralisia de paradigma.  É aqui que fica a pista para pensar que a ideologia dominante é hegemônica porque adentrou nas estruturas do inconsciente de uma coletividade por meio da facilitação do exercício dos desejos primitivos de cada indivíduo.  Daí que o capitalismo deve muito do seu sucesso por ter conseguido traduzir, como “leis de mercado”, os princípios darwinistas da evolução das espécies: matar se preciso for para não morrer;  se reproduzir para perpetuar a espécie a qualquer custo.

    Exatamente por apelar para essas estruturas instintivas muito profundas, presentes no nosso cérebro reptiliano, é que os discursos e as práticas políticas fascistas, em determinadas circunstâncias históricas, ganham força e contornos mais dramáticos, autorizando a emergência de sujeitos portadores de pensamentos e atitudes radicais muito primitivas, tal qual já vimos no fascismo Italiano dos anos 1920 e 1930, no nazifascismo alemão dos anos 1920-1930 e, agora, no bolsonarismo brasileiro, entre outros.

    O que fazer?  Segue aqui o conselho de Michael Shermer, psicólogo, escritor e historiador estadunidense da ciência: "Se os dados que deveriam corrigir uma opinião só servem para piorar as coisas, o que podemos fazer para convencer o público sobre seus equívocos? A experiência aconselha manter as emoções à margem; discutir sem criticar (nada de ataques pessoais ...); ouvir com atenção e tentar expressar detalhadamente a outra postura; mostrar respeito; reconhecer que é compreensível que alguém possa pensar dessa forma; tentar demonstrar que, embora os fatos sejam diferentes do que seu interlocutor imaginava, isso não significa necessariamente uma alteração da sua visão de mundo." (Michael Shermer).  O que não é exatamente fácil e nem simples de se fazer.

    O que parece que não foi levado em consideração é que aquele que deve agir como o sugerido, também possui um cérebro reptiliano, está submetido às mesmas leis da evolução e também imerso nos valores da sociedade capitalista em que vive, portanto, mais ou menos reproduzindo de forma passiva a ideologia da classe dominante do sistema em que vive. Portanto, a dissonância também é válida em certos setores da esquerda, especialmente os reformistas, em função de suas paralisantes abivalências, ilusões e reproduções de partes da ideologia dominante. 

    Não deveriam existir dúvidas entre aqueles que querem construir e viver em um mundo melhor, em um sistema político-econômico mais justo, de forma culturalmente solidária e respeitosa, seja ele socialista, capitalista, anarquista ou qualquer outra forma que um dia possa a vir existir, de que é preciso vivenciar a utopia de muitas maneiras nesta própria vida.  Pode-se começar incorporando outra moral que não a do vale tudo capitalista, uma ética no trato humano superior e um ethos profissional mais engajado e responsável, bem como assumir formas de consumo mais responsáveis consigo mesmo e o meio-ambiente.  É preciso observar, criticamente, os fetiches que esse sistema cria e estimula como forma de dominação pela alienação no consumo.

    O capitalismo, desde os seus primórdios, não fez outra coisa a não ser se construir a partir dos escombros do feudalismo, acelerando seu fim.  Para tanto, os seus intelectuais orgânicos fizeram um trabalho muito eficiente de convencimento e justificação de suas práticas. 

    Talvez esteja chegando a hora disso tudo tomar um outro rumo histórico e mudar; muito mais agora que a existência da espécie humana parece estar também ameaçada com a resposta de um planeta que não mais suporta esse seu mais “ilustre” habitante.  Só mesmo a arrogância humana para pensar que a sua espécie não tem prazo de validade; pelo contrário, pensa ter garantia vitalícia de existência.  Não há um destino manifesto da espécie humana.  Ela pode dar errado...e está dando.  Somente a solidariedade, a extinção da sociedade de classes e da propriedade privada como está posta, podem salvar o Homem do seu fim ao facilitar que ele coloque mais de sua libido para a pulsão de vida do que para a pulsão de morte, como vem fazendo. 


[i] Engenheiros do Hawaii.  Toda Forma de Poder, 1989.  https://www.youtube.com/watch?v=mQ-bh66bo3M

[ii] Cazuza/Frejat. Maior abandonado, 1998.  https://www.youtube.com/watch?v=RntH0m0ikEE


Comentários

  1. O homem é fatidicamente um ser que sente necessidade em ser percebido, seja por bons ou maus motivos. Temos muito o que aprender com as crianças que querem viver, caem e se levantam, querem companhia e aproveitam o tempo para aprender e se divertir; tem uma curiosidade inerente e trazem alegria em viver, disputa para que? melhor é ter colaboração.

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  2. Respostas
    1. O texto é de minha lavra e responsabilidade. Obrigado pela pergunta. Contatos: wagnermenezes.psi@outlook.com

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