O MAL-ESTAR DA PSICANÁLISE

 Por Wagner Chagas de Menezes e Álvaro Senra


Por Wagner Menezes e Álvaro Senra 


Apresentação


Sabemos que a psicanálise nasceu liberal, no contexto da política e da cultura liberais, europeia e vitoriana, que clamava pelo surgimento de uma forma de tratamento para as doenças psíquicas por ela mesma criada.  Neste caso, a então chamada histeria e toda a sua coleção de sintomas.  A histeria foi o produto psíquico dos conflitos existenciais e sexuais da cultura do liberalismo e naquele momento histórico-cultural a psicanálise surgiu como resposta do seu tempo.

Até onde sei, a psicanálise só tem expressividade na França, no Brasil e na Argentina.  Recentemente, há uns poucos anos, assisti a um documentário sobre a psicanálise na China, então, talvez um dia ela lá também possa ecoar...

No Brasil, a psicanálise atingiu proporções bem expressivas.  Exatamente por ser um tratamento caro e de difícil acesso, até mesmo muito elitizado é que levantamos a hipótese que isso talvez se deva à pouca ou nenhuma regulamentação sobre a formação dos seus praticantes, assim como a ausência de fiscalização de órgãos públicos de saúde sobre as instituições psicanalíticas.  Isso se relaciona  às peculiaridades da própria psicanálise que, desde o seu surgimento em finais do século XIX, sob a liderança de Sigmund Freud, nasceu fora da academia, sendo a própria clínica o principal laboratório de testes de suas teorias e métodos. 


Os limites 


Exatamente por ter nascido fora da academia é que a psicánalise, volta e meia vira alvo do ataque dos segmentos positivistas da academia.  Seus críticos querem ignorar que a Psicanálise possui um método próprio (método psicanalítico) e um objeto científico para chamar de seu: o inconsciente e, por derivação, suas relações com os dois outros sistemas da mente (consciente e pré-consciente) e com as instâncias da mente (ego, id e superego).  

A psicanálise propõe uma teoria da mente que lhe é muito própria e que vem sendo corroborada por algumas pesquisas neurocientíficas, especialmente aquelas implementadas pelos neurocientistas Sidarta Ribeiro no Brasil, entre outros, assim como Mark Solms na África do Sul.  Em função dessa aproximação, a psicanálise também vem sendo obrigada a rever alguns de seus principais conceitos e proposições, especialmente no que diz respeito à teoria do sono e do sonho e à sexualidade feminina, entre outros.

Ainda que o método clínico psicanalítico seja rigoroso e próprio, somos obrigados a reconhecer que não há cotejamento entre os resultados clínicos dos pacientes dos milhares de psicanalistas espalhados pelo Brasil e o mundo.   Isto abre espaço para a crítica da "ineficácia experimental" da psicanálise, que não deveria se abster ou temer os estudos experimentais. 

 Desconhecemos o andamento de pesquisas exploratórias descritivas, que cruzem os dados dos resultados de um número estatisticamente relevante de casos clínicos que, de forma qualitativa e quantitativa, permitam estabelecer relações gerais entre o método e seus  resultados.  Contudo, existe um estudo muito interessante a respeito, com rigorosa metodologia.  Trata-se de LEICHSENRING,  Falk e RABUNG, Steven.  Effectives of long-term psychodynamic psychoterapy.  Journal of American Medical Association, V.300, N.13, 1 out 2008.  

De qualquer forma, a psicanálise continua no varejo, enquanto a ciência positivista exige dados no atacado.  Isso não desqualifica a psicanálise como clínica da mente na medida em que somente o paciente atendido é, in limine, individualmente qualificado para expressar se o tratamento psicanalítico e o psicanalistas contribuíram eficientemente para a remissão dos sintomas, ou seja, uma experiência de transformação.  

Neste texto, queremos levantar questões importantes sobre a formação em psicanálise, os limites desse saber em dar conta de todas as questões da vida e das sociedades, bem como a tendência de gerar uma anomalia psicossocial que é o psicanalista em tempo integral. 


Psicanalise: um saber rebelde

O fundamental para as sociedades psicanalíticas é que a formação de um analista se dê dentro do chamado “tripé psicanalítico”, ou seja, estudos teóricos das obras completas de Freud, análise pessoal e supervisão do trabalho por outro psicanalista.  Mas cabe lembrar que Freud acrescentou que não é psicanalista aquele que não sabe interpretar seus próprios sonhos.

A dificuldade que as organizações públicas e privadas têm em colocar a psicanálise em uma camisa de força é a mesma que os tais métodos científicos têm em considerá-la ciência ou não.  Em outras palavras, o fenômeno real da transferência e da contratransferência analítica não podem ser capturados por meio de um microscópio e nem mesmo mapeados por métodos estatísticos em função da dificuldade em se obter as fontes da escrita clínica que serviriam como metafontes, não obstante alguns pesquisadores dizerem que conseguiram este tento, obtendo, todavia, fortes críticas ao seu estudo (Ver estudo acima citado). 

Uma das ilusões existentes, e que acomete um expressivo número de psicanalistas, é que o estudante de psicanálise, tendo cumprido todo o ritual para a sua formação e atuando sob supervisão, tornou-se psicanalista.  Não, isso não ocorreu!  O aprendizado é constante e ele se dá cumulativamente na clínica psicanalítica, diante do analisando e sob supervisão constante.  Ele atinge seu momento ótimo quando o psicanalista na sua própria análise atingiu a sua consciência trágica, a ultrapassou e aprendeu a interpretar os sentidos dos próprios sonhos.

Os jovens e os mais experientes psicanalistas não deveriam perder o constante senso crítico e autocrítico, nem mesmo alimentar crenças muito ingênuas sobre a psicanálise.  A primeira dela é apostar na crença de que a psicanálise seria capaz de reverter, por exemplo, a decadência civilizacional pela qual passamos.  Não, não é capaz.  Primeiramente porque já decorreram 125 anos desde a publicação do primeiro livro de Freud, sem que sua influência coletiva possa ser mensurada, ainda que, para os indivíduos isolados, possamos testemunhar histórias de sucesso.  Em segundo plano, não podemos esquecer que a psicanálise clínica é um processo individual, de natureza iluminista, que só interessa a uma parcela muito pequena da população que se disponha a bancar seus custos, quase sempre altos, e que tenha uma autocrítica sobre as condições da existência.  Dessa parcela, uma subparcela está apenas interessada em resolver questões existenciais e imediatas; e uma parte dela desiste da análise porque se deparou com a resistência, com lembranças conscientes e material inconsciente nos quais não quer tocar por não pensar que não poderá suportar.  Por conseguinte, hoje a psicanálise está restrita quase a uma ação entre amigos em algumas poucas nações que ainda a recepciona francamente.

Portanto, somos forçosamente levados a crer que a psicanálise não é a única e definitiva alternativa.  A alternativa é a política – e seria bem desejada uma aproximação entre psicanálise e política, respeitando-se as esferas próprias de cada campo.  Não existe alternativa para a coletividade fora da política.  Sempre o foi e sempre será!  Obviamente que a psicanálise é fundamental para o entendimento das ações dos indivíduos.  Mas a verdade é que o impacto dela precisa ser honestamente relativizado.  A imensa maioria da população não se propõe a fazer análise, ignora a psicanálise, desconhece ou, se conhece, rejeita-a por razões diversas ou por não ter recursos para fazê-la. Ao mesmo tempo, é forçoso reconhecer, poucos entre os profissionais da psicanálise têm preocupação ou interesse em estender sua prática para além do espaço limitado de seus consultórios.

Daí que a grande questão que está posta para quem estuda ou pratica a psicanálise é ter clareza dos limites desse campo de estudos, não obstante ela ser extremamente instigante ao pôr os sujeitos em crise de crescimento e de consciência trágica, inclusive abalando antigas e recentes escolhas pessoais, incluindo aí amizades, relacionamentos amorosos, escolhas profissionais.  Isso pode assustar, pois é um processo terapêutico difícil demais, arriscado demais, custoso demais e extremamente individual para que traga em si uma capacidade, que muitos ingenuamente creem: a de que ela tenha um poder revolucionário de mudança coletiva do mundo.  De qualquer forma, podemos continuar apostando na política como um bem coletivo desde que ela se caracterize pela ação coordenada, ainda que desigual, e não pela inação eminentemente individual e autocontemplativa.   Ainda que não se concorde com isso, sempre há a opção de dizer para si mesmo: “Eu não sei em que acreditar!”.


O psicanalista 24h


A origem liberal da psicanálise gerou um sujeito que chamaremos de “o psicanalista 24h” ou o “analista em tempo integral”.  Esse tipo nos faz lembrar daquele boneco de tecido sintético que, alimentado por um potente circulador de ar em sua base, fica 24 horas em pé, balançando os braços.  Podemos começar pelas lições de Jacques Allan-Millet ao nos lembrar que o psicanalista só existe como uma função.  Isto quer dizer que ele não existe fora da sua funcionalidade, ou seja, de ser objeto de transferência por parte do seu analisando.  Ali, no setting analítico, o psicanalista analisa a partir de sua formação e do desejo do analisando em transferir para ele conteúdos inconscientes.  Neste diálogo, até mesmo os desejos do analistas podem aflorar.  Finda a sessão de análise, o analista volta a ser o João, a Maria, o José etc.  

No uso das teorias da psicanálise, nada impede o analista, individualmente, de elaborar, para si ou a pedidos, abordagens ou análises sobre um determinado fenômeno social.  Contudo, não nos parece ético o hábito de alguns psicanalistas de viver analisando a todos e a tudo o tempo todo.  Muitas vezes, usa o seu conhecimento para esgrimar o outro, marcando uma posição muitas vezes narcísica em relação a quem sente como uma ameaça.  Além disso, mostram uma pretensa superioridade e até mesmo sutilmente aponta falhas na formação alheia quando isso em si só já é uma falha na própria formação.  Em outras palavras, o “analista em tempo integral” não relaxa nunca.  Uma coisa é dialogar a partir da referencial psicanalítico, outra coisa é estar sempre em guarda numa tentativa obsessiva de estabelecer sua identidade “analisando” o amigo, o colega, o parente ou qualquer pessoa mesmo sem ser solicitado a tal.   E, mesmo se solicitado, naquele momento, naquele local, o psicanalista está fora da função analítica. Nunca relaxando, in limine, podemos pensá-lo como chato, inconveniente e deselegante; um narcisista das pequenas diferenças.

Podemos depreender que o “mal-estar” da psicanálise é, antes de tudo um efeito de uma individualização à fórceps produzida pela versão selvagem do liberalismo: o neoliberalismo, assim como da perda de sua força subversiva.  Isto ficou claro quando da emergência do paradigma da depresão como um mal do cérebro, "tratável" por meio de psicofármacos em lugar da depressão como um exercício de pensar a si mesmo como uma personalidade conflitiva.   

O que nos resta é seguir em frente pelas próximas centenas de anos.  Vamos em frente!

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