O BRASILEIRO PRECISA APRENDER A SENTIR VERGONHA


 

(Por Wagner Chagas de Menezes – Historiador e Psicanalista)

 

A vergonha é um valor social. É assim na China, no Japão e em muitos outros países. No Brasil não. Sigmund Freud tinha a vergonha como marca de um processo de  humanização, assim como o nojo.

A vergonha tem uma importante função social ao fortalecer os mecanismos repressivos em prol dos valores civilizatórios, na medida em que ela é marcada pelo olhar de aprovação ou desaprovação do outro como coletividade.  A vergonha tem função pedagógica.

Na vergonha, também existe o desejo da transgressão, mas o sujeito se reprime temendo o olhar denunciador do outro e a reprovação coletiva. O sujeito que tem a vergonha como valor deseja ser descoberto para ser libertado da própria ignomínia e poder lavar a honra. Daí que não sentir vergonha deveria ser desonroso por estes trópicos.  Mas não é: transgredir, fraudar, corromper, trapacear são comumente vistos como sinais de esperteza, sinônimo de sagacidade.                

A vergonha não é um valor predominante na cultura brasileira. Não se estabelece como a base de um código de conduta e de honra tal qual o bushido japonês (código de honra). Neste, a vergonha leva à perda da honra, a qual só poderá ser recuperada com um grande sacrifício individual; às vezes com o custo da própria vida.

Na culpa, a reprovação do outro é secretamente interiorizada e processada, sem vinculação com a compensação dos prejuízos causados ao coletivo para ser, logo após, transmutada em pecado.  Ao ser transmutado em pecado, o ato culposo deixa de ser do campo da ética e da estética para ser resolvido interiormente como uma questão religiosa na maioria dos casos.   Essa operação facilita o “ser perdoado”, desde que se aceite a divindade cristã como salvadora: “Aceite Ele como seu salvador e estarás salvo”. Pronto! Mágica! Desta forma, a reparação social do erro deixa de ser necessária, portanto, a culpa não é pedagógica.

No Brasil é a culpa e não é a vergonha que organiza as expectativas sociais. Quando o sujeito corrompe ou é corrompido; quando ele propõe, vota e apoia um programa político que acaba por lhe subtrair o emprego e a poupança de uma vida; quando ele programa ou apoia projetos que jogam contra os seus próprios interesses trabalhistas e previdenciários, assim como os da nação, colocando em risco sua reprodução material, não há nenhuma garantia de que ele aprenderá com seus erros porque ele não se sentirá implicado no erro. Este tipo de eleitor projeta no coletivo a culpa quando seus interesses pessoais não tem sucesso.  Por meio da projeção (Ver neste blog texto específico sobre a "projeção"), ele transfere seu fracasso pessoal para um coletivo, muitas vezes abstrato, na forma, por exemplo, da frase: “Nenhum político presta.  É tudo igual!”.   Assim, este indivíduo não se responsabiliza por suas escolhas individuais equivocadas. Em contrapartida, ele se esforçará para que o sucesso seja visto por ele e pelos demais como atributo exclusivamente individual. A lógica liberal circula na massa do seu sangue; daí também sua fácil adesão aos ideários neoliberal, ultraliberal e seus flertes com o protofascismo.

É também por isso que no Brasil não se verá políticos pedindo desculpas em cadeia nacional por ter se corrompido ou se envolvido sexualmente com uma secretária, como ocorreu no escândalo envolvendo Bill Clinton e sua secretária, Monica Lewinski: aqui isto seria visto como sinal de virilidade, não obstante ser só mesmo machismo.  Não se ouvirá um general reconhecendo os seus erros por ter usado de força hipersuficiente sobre um sujeito algemado, torturado e humilhado em estado de hipossuficiência durante a ditadura militar brasileira.  Não se assistirá a nenhum político corruptor colocando termo em sua própria vida ao ser descoberto em conluios econômicos espúrios e conspiratórios com agentes do Estado, como o fez o ministro japonês da Agricultura, Toshikatsu Matsuoka, envolvido em um escândalo de corrupção em maio de 2007.  Não se verá agentes do Estado entregando o cargo e saindo envergonhado da vida pública.  Nestes tristes trópicos não se verá um político fazer o mea culpa por ter usado dinheiro do auxílio moradia para “comer gente” ou vender dificuldades para obter vantagens pessoais com a compra de vacinas, com o sacrifício de mais de meio milhão de vidas, como o fez o rei da Suécia (Carl Gustaf Folke Hubertus) e seu epidemiologista-chefe (Anders Tegnell) ao assumirem, envergonhados, as responsabilidades por terem apoiado um modelo de flexibilidade sanitária desastrosa para o seu povo.

No Brasil, o comum é o sujeito “avergonhado”: aquele que nunca teve ou perdeu a vergonha. Contudo, a vergonha é um sentimento muitíssimo mais eficiente para o controle da frequência e da intensidade das condutas humanas, que fraudam o contrato social e os valores da democracia e de uma civilização. Infortunadamente, a vergonha não faz parte da nossa cultura de forma expressiva. Caso o Brasil fosse uma sociedade estabelecida sob a égide da ética e, por tabela, da vergonha, o fracasso seria individual e o sucesso seria sentido e comemorado como coletivo.

Uma parcela majoritária dos brasileiros continuará a não sentir vergonha pelos seus deslizes legais e éticos. Para estes, bastará ocultar o crime doloso ou culposo, sentir culpa em segredo, esperar o tempo passar e legá-la à repressão ou ao recalcamento psíquico, os quais também são mecanismos ineficazes de defesa do ego.  A penitência poderá vir com novos dos mesmos sintomas, ou seja, continuando a votar em projetos que pioram a própria qualidade de vida para, assim, sentir mais culpa. Mais culpa exige mais penitência e punições autoimpostas, sejam nas formas psicossomáticas ou em outras modalidades de sofrimentos.  A questão é que penitências e autopunições geram dores e sofrimentos, quando não somente na mente, também no corpo-mente. Não há para esse sujeito, diante da culpa reprimida ou recalcada, como escapar da solução de compromisso entre o mundo da ordem externa e da ordem mental interna, a qual cobrará um alto preço para que se restabeleça algum equilíbrio físico/psíquico (homeostase), ainda que precário e temporário. Tudo isso gira em um círculo neurótico praticamente sem fim, até que o corpo físico (individual) ou o corpo social (coletivo) sucumba. Escolher um programa de governo visivelmente protofascista é uma escolha desse tipo.

Também há aqueles que não sentem nem vergonha e nem culpa.  No entanto, aí já estaremos no terreno perigoso e até criminoso das psicopatias graves, com seus delírios paranoicos e psicóticos. Eles também existem na política, no mercado financeiro...em toda parte.

Comentários

  1. Texto muito pertinente. Me causa um incômodo muito grande o fato de o brasileiro transmutar as maiores vergonhas em piada. Me parece que isso acaba por suavizar atos extremamente vergonhosos de nossa política. Realmente, seu texto trouxe à luz questões muito relevantes.

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  2. Trabalhar todos os sentimentos no ser se faz de suma importância...

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