O AMOR TRANSFERENCIAL: quando a analisanda se apaixona pelo analista
(Por Wagner Chagas de Menezes – Psicanalista e Historiador)
O amor como delírio
“Bom
dia Wagner, tudo bem? Posso te perguntar uma coisa? Prometo que não vou ficar te pedindo
conselhos após isso, é que é algo que não tô sabendo lidar, e acho que somente
outro psicanalista saberá me dizer o que fazer... Desde que iniciei a terapia
tenho tido diversas sensações, mas uma delas tem me incomodado. Há alguns dias estou tendo fantasias com meu
terapeuta. Não sei se é por conta do TOC que por vezes tenho compulsões sexuais
e me imagino com pessoas que não gostaria de imaginar, ou se é algum tipo de
transferência, ou até mesmo alguma carência afetiva. O fato é que isso me deixa
constrangida perto dele. Cheguei a desejar que ele me frustrasse de alguma
forma porque assim perderia a admiração por ele, e por consequência não
pensaria mais nele, aconteceu mesmo que me frustrei na última sessão com o que
ele disse, e meus sintomas pioraram fiquei depressiva. Funcionou por alguns
dias parei de imaginá-lo, porém acho que isso voltou a acontecer. Será que devo contar a ele?”
(Sabina)
Participando de um determinado grupo de apoio e
esclarecimento virtual a pessoas com Transtorno Obsessivo Compulsivo - TOC,
recebi inbox o texto acima de uma das
participantes. Para resguardar sua
verdadeira identidade e em homenagem a uma das primeiras psicanalistas, resolvi
chamá-la pelo nome da russa Sabina Spielhein (1885-1942).
Não obstante conhecer a teoria sobre o amor
transferencial, só conhecia estes casos a partir de livros e relatos de
colegas. Foi a primeira vez que fui
demandado a opinar sobre o tema.
Em “Observações sobre o amor
transferencial (Novas recomendações sobre a Técnica da Psicanálise III – 1915
[1914]”, parte do livro XII (O caso Shreber e artigos sobre a técnica), Sigmund
Freud corajosamente avançou sobre este tema que muitos prejuízos pessoais haviam
lhe causado no passado no seu círculo de relações. Este fenômeno psíquico existe desde os
primórdios da psicanálise. Foi o mesmo
que acometeu o criador do método catártico, Josef Breuer, levando-o a abandonar
de forma intempestiva o tratamento da jovem Ana O. (Bertha Pappehein),
que por ele se enamorara ao ponto de desenvolver uma gravidez psicológica. Assustado, Breuer abandonou a paciente,
afastou-se da psicanálise e rompeu com Freud.
O próprio Freud levou muito tempo
para entender o que era aquele fenômeno. Somente muito tempo depois, em
"Observações sobre o amor transferencial", que ele se debruçou para
valer sobre este fenômeno. Neste texto,
ele alertava sobre as dificuldades dos analistas com o conteúdo das
transferências e como manejá-los. Este
manejo é muito mais difícil quando se trata do enamoramento da(o) paciente com
o(a) analista. Freud chamou este
fenômeno de “amor transferencial” quando a impossibilidade do amor deseja deitar
no divã.
O Amor como Resistência ao Amor
A pergunta é: por que e para que a jovem Sabina apaixonou-se
pelo seu analista? Não obstante outras
abordagens, Freud deixou claro que a maior serventia da transferência erótica
para o tratamento psicanalítico é o reconhecimento que ela nada mais é do que o
trabalho da resistência. Ao alimentar a
fantasia da paixão, Sabina colocou o ego em estado de resistência porque os
conteúdos recalcados ameaçaram vir à tona e o ego para não sofrer com aquilo
que já o fizera sofrer, resistiu a dar passagem ao material psíquico que era
incompatível com as demandas do Id. Sabina
está resistindo à recordação de "algum fragmento particularmente aflitivo
e pesadamente reprimido da história da sua vida" (Freud). Neste caso, qual a serventia da
resistência? Constituir-se em um
mecanismo de defesa do ego, com o intuito de: 1) atrapalhar o prosseguimento da
análise; 2) desviar o objetivo do trabalho analítico; 3) constranger e
desautorizar o analista.
A insistência de Sabina em se achar enamorada do
analista colocava o seu amor em dois momentos importantes: do ponto da
arqueologia da sua mente, remontava-a à primeira infância e à natureza edipiana
das suas relações objetais; do ponto de vista prático, submetia-a a alimentar
às escondidas um desejo cuja realização era da ordem do impossível. E há para o Id algo mais tentador do que um
desejo impossível e que, exatamente por ser impossível, mobilizava uma
quantidade enorme de energia pulsional em prol da consecução de seu objetivo de
forma constante, ainda que inexequível?
E onde estava esta impossibilidade que alimentava seu desejo? Antes de revelar isto, preciso esclarecer que
ela não havia contado absolutamente nada sobre ele para o seu analista. No entanto, era muito provável que ele já
houvesse notado, ao ponto dela ter saído da última sessão, quanto pareceu
deixar seus sentimentos nas entrelinhas, bastante angustiada. Este amor era tão transferencial que sua
impossibilidade estava marcada a ferro pela ética psicanalítica, seguida
firmemente pelo jovem analista, e pelo fato dele ser homossexual.
Este último dado e a angustia sentida por Sabrina, nos
dá alguma pista. A angústia é o carteiro
do tempo, que quando tem oportunidade faz sempre uma tentativa de entregar uma
correspondência perdida do passado.
Quando esta angústia se associa ao fato de ter desejado alguém que não
se interessaria sexualmente por ela por ser homossexual, lança o umbigo do
problema de Sabinae, muito provavelmente, a matriz do seu TOC diretamente no
colo da sua relação primária com a mãe.
O primeiro objeto de amor de uma menina é sempre a sua mãe e a sua
entrada na situação edipiana se dá pela assunção do complexo de castração. Não é por acaso que o seu TOC está ligado a
todo um ritual de uso do aparelho urinário antes de sair de casa. Mas não entrarei neste mistério por agora e
não o aprofundarei por não ter os elementos discursivos deste caso para ir mais
longe.
Quando o Inconsciente Chama o estranho para a Conversa
É no contexto deste terceiro item (constranger e
desautorizar o analista), que pude observar as artimanhas do intricado jogo das
instâncias psíquicas (id, ego e superego).
Enquanto a conversa se desenrolava inbox,
não pude me privar de questionar a mim mesmo: por que esta moça me chamou para
a conversa? Após alguns minutos de troca
de mensagens, com as quais eu pude me assenhorear de alguns dados da vida de
Sabrina, obviamente sem incorrer em deslizes éticos em relação aos
encaminhamentos que um outro e desconhecido colega dava à terapia da moça, pude
concluir que Sabrina, a serviço do seus conteúdos inconscientes, sem saber
daquilo que não queria saber, tentava sabotar a si mesmo buscando na minha fala
algo que pudesse desautorizar e desqualificar o seu psicanalista e, assim,
interromper a sua terapia, a qual parecia estar sendo bem conduzida devido às
posturas por ele tomada e relatada por Sabrina.
A resistência de Sabina é um “agente provocador” que
atua por meio da encenação (acting out)
de um estado amoroso exagerado na forma da rendição sexual, a qual está a
serviço do funcionamento da repressão, que por sua vez, pari passu, sinaliza as armadilhas da licenciosidade.
Diante desta transferência amorosa, poder-se-ia
aventar quatro desfechos possíveis, não recomendados pelo próprio Freud: 1) a
união legal e permanente entre analisando(a) e analista; 2) a separação entre analista
e analisando(a), com a interrupção do tratamento; 3) o estabelecimento secreto
entre analista e analisanda(o); 4) a retribuição dos sentimentos amorosos da
paciente sem a respectiva troca física do afeto.
Foi exatamente a partir desta última, a quarta saída
proposta por Freud que ele construiu os fundamentos da técnica analítica para
estes casos: a) uma terapia pautada pela sinceridade; b) o estabelecimento da
neutralidade, mas não como contratransferência; c) a frustração do analisando
em todos os seus desejos transferidos para o analista, não satisfazendo-os,
obviamente; d) a permissão da persistência das necessidades e anseios da(o)
analisanda(o); e) a condução do apaziguamento das forças de “necessidade e
anseio” por meio de substitutivos; f) trabalhar o acting out apenas como encenação das lembranças, ou seja, o
material psíquico deve ser mantido estritamente no âmbito dos eventos
psíquicos; g) frustar o acting out
como possibilidade na vida real e encaminhá-lo para o setting analítico.
Sinteticamente, foi assim que Freud orientou sobre como
atravessar este caminho de pedras:
“O caminho que o analista deve seguir não é nenhum
destes, é um caminho que não existe modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para não se afastar
do amor transferencial, repeli-lo ou torna-lo desagradável para a paciente; mas
deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor
transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve
atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que pode
ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica da
paciente para sua consciência e, portanto, para debaixo do seu controle. Quanto mais claramente o analista permite que
se perceba que ele está à prova de qualquer tentação, mais prontamente poderá
extrair da situação de seu conteúdo analítico”
A Natureza do Amor é Transferencial, Compulsivo e
Beira o Patológico
Todo trabalho do analista é desvendar a escolha
objetal infantil da(o) analisanda(o) e as fantasias referentes a esta
escolha. Mas neste trabalho, nem toda a
verdade é salutar se dizer à analisanda(o), tal como dizer que o seu estado de
enamoramento não é real. Isto por três razões:
a) não é a resistência que gera o amor transferencial; b) não é a resistência
que lhe dá genuinidade e c) a natureza
de todo amor é transferencial. Neste
ponto, há uma grande contribuição ao entendimento das raízes do amor e das escolhas
amorosas que todos fazem em suas vidas.
Novamente, Sigmund Freud dá o seu toque de mestre à
questão do amor: “É verdade que o amor
consiste em novas adições de antigas características e que ele repete reações
infantis. Mas este é o caráter essencial
de todo estado amoroso. Não existe
estado deste tipo que não reproduza protótipos infantis. É precisamente por desta determinação
infantil que ele [o amor] recebe seu caráter compulsivo, beirando, como o faz,
o patológico”.
Foi a partir da conclusão de que todo amor beira o
patológico que podemos diferenciar o amor transferencial em normal e
compulsivo. No caso compulsivo, há uma
maior predominância do padrão infantil; é menos adaptável e modificável. Este tipo de amor exibe com muita clareza sua
dependência do padrão infantil. Por ser
menos adaptável, exibe uma maior capacidade de mutações. Então, finalmente quando Sabina entrou em
transferência analítica, o amor compulsivo foi intensificado pela resistência,
desconsiderando gravemente a realidade da relação analisanda-analista,
flertando com a insensatez e a inconsequência.
Ora, há uma inequívoca relação do ritual
obsessivo-compulsivo com a regressão contida no seu enamoramento pelo seu
analista: um amor nitidamente edipiano.
Poderia aventar a hipótese de que Sabina resiste à terapia regredindo ao
segundo momento da situação edípica nas meninas, quando elas passam a ser opor
à mãe e estabelecem uma relação de amor (prazer) como o pai. A questão é que este “amor” é impossível do ponto
de vista prático e foge aos princípios da Kultur (Civilização), que regem as
relações familiares. No entanto ele
existe e por existir, gera culpa. Em
Sabrina, esta culpa não tem encontrado outra solução a não ser infligir a si
mesmo um sofrimento ritualístico que os psiquiatras denominaram TOC (Transtorno
Obsessivo Compulsivo), o qual, não obstante ser o sintoma de um conflito
anterior, tem sido tratado como a doença em si.
O ritual obsessivo e compulsivo
da Sabrina, está ligado a um descontrole do sistema urinário sempre que está
prestes a sair de casa.
Fazemos aqui uma pausa para lembrar o simbolismo por
trás dos rituais. Todo ritual é
endereçado a um senhor (deus). Então,
que “senhor” é este? De que forma esta
“oferenda” - a essência do transtorno - pode agradá-lo? Estas são perguntas que, uma hora ou outra,
virão à tona no processo analítico. Mas
exatamente por estar próximo do umbigo do problema, a resistência às revelações
dolorosas que o superego considerou ameaçadoras para o ego e a reprimiu durante
tanto tempo, acompanhada da angústia, veio a cumprir o seu papel de regressão
ao induzir um enamoramento pelo psicanalista.
A angústia que ela sentiu ao ser eticamente frustrada pelo seu analista
foi fruto do conflito inerente a todo triângulo edípico entre o amor, o ódio e a
exclusão. Por questões transferenciais,
seu analista foi colocado na posição da figura objetal paterna por meio de um
mecanismo chamado substituição por projeção, pois o que se projeta é sempre o
desejo; desejo pelo pai: o círculo se fecha.
O Amor Frustrado
Aqui chegamos ao ponto alto do manejo analítico para o
enamoramento de Sabrina. O analista deve
encaminhar sua recusa no sentido de encaminhar Sabina a aprender a superar o
“princípio do prazer”, ou seja, dar-lhe oportunidade de entender que o “ser” do
seu comportamento é o seu “ego ideal” (uma quimera), mas está longe de ser o
seu “ideal de ego” (uma possibilidade).
Desta maneira, Sabina seria levada a abandonar a satisfação imediata do
seu desejo não socialmente aceitável, em troca de um mais ainda mais incerto porque
distante. Este segundo objeto de desejo,
só nas aparências é psicologicamente satisfatório e pleno, assim como
socialmente irrepreensível.
Vai ficando claro então que as forças opostas,
internas e externas, que o analista deve enfrentar para chegar a um bom termo
são enormes. Elas vêm de dentro de suas
forças sexuais instintuais; dos seus opositores e leigos, que acham que não há
mal algum em deixar fluir tais forças de natureza sexual.
Finalmente as tensões exercidas pela(o) própria(o)
analisanda(o), tentando de muitas maneiras de sedução, tornar o seu analista
refém da sua neurose são a demonstração de que ela não sabe daquilo que não
quer saber, mas que o analista sim. Este
é um terreno minado, pelos qual todos um dia terão que atravessar para saírem
do outro lado ressignificados.
Comentários
Postar um comentário